O Poder do discurso materno

 O Poder do discurso materno

Logo que nascemos – e às vezes antes, durante a gravidez -, nossa mãe determina “como somos”. Assim, as lembranças se organizam, em nossa consciência, por meio das palavras que ouvimos desde a mais tenra infância. Toda família tem a boazinha, o estudioso, a ovelha negra, o avoado… Mas até que ponto esses rótulos de fato refletem quem somos?

Isso é fácil de descobrir já na cena do parto. Nossa mãe diz: “Como a Maria é tranquila, nada a ver com o João, que era muito agitado”. De alguma maneira misteriosa, já nos coube o personagem de “calma e boa” ou vice-versa. Mas, de qualquer forma, já há palavras que nomeiam como somos, mesmo que ainda não tenhamos tido tempo de nos manifestar. Isso acontece porque os seres humanos podem chegar ao entendimento por meio de comparações.

O fato é que desde o início alguém nomeia como somos, o que nos acontece ou o que desejamos. Isso que o adulto nomeia (geralmente a mãe) costuma ser uma projeção de si mesmo sobre cada filho. Diremos que é caprichoso ou chorão, muito demandante, exigente, silencioso, tímido, cabeça dura, divertido, mal-humorado ou atrevido. É verdade? Para a mãe, sim, porque tudo depende do ponto de vista do qual ela observa. Do ponto de vista da criança, ela simplesmente chora porque quer companhia, mas os adultos interpretam que chora mais do que nossa paciência aguenta. Então dizemos: “É chorão e manhoso”. Possivelmente a criança precisa desesperadamente ser compreendida e atendida, carregada nos braços e ninada, mas nós, pais, tergiversamos “é isso o que está acontecendo”, opinando que é uma criança insistente demais ou que não se contenta com o que tem. É dessa forma que acontece algo à criança, mas isso é nomeado com base na interpretação do que acontece a outra pessoa. Simplesmente porque quando somos crianças ainda não temos palavras para dar nome ao que nos acontece. Assim, pouco a pouco, para cada experiência pessoal, escutamos e assumimos um “nome” emprestado. Por exemplo: “Sou terrível, e se sou terrível não entro em argumentações, sou passional, não penso e me engano com frequência, tudo por não pensar”. É verdade? Em parte talvez sim, é possível que eu seja uma criança insistente e tenha tanta vitalidade que ninguém consiga deixar de me ouvir, mas também é provável que seja uma reação desesperada em busca de amor, ainda que “isso”, essa necessidade impaciente de ser amado, não tenha sido nomeada por ninguém.

Mas também é certo que, muitas experiências reais que nos aconteceram durante a infância não foram nomeadas, portanto não existem para a consciência. É mais fácil dizer que não nos lembramos delas. Por exemplo, suponhamos que nos dedicamos a cuidar de nossa mãe e de nossos irmãos menores, porque nossa mãe priorizava os cuidados de sua mãe enferma. Nesse caso, ninguém nunca nomeou a falta de cuidados e atenção em relação ao nosso ser criança. Hoje em dia, podemos recordar com riqueza de detalhes todos os infortúnios de nossa mãe, já que ela se ocupou de relatá-los ao longo dos anos. Mas curiosamente nossa mãe não sabia nada de nós, nem de nossos sofrimentos secretos ocorridos em nossa infância. Nesses casos, nossa mãe dizia que fomos bons e responsáveis, mas ninguém nomeou nossas carências ou necessidades não satisfeitas, nem a sensação de não sermos merecedores de cuidados, coisa que arrastamos desde então ao longo da vida. Em nossas lembranças conscientes, éramos crianças boas, educadas, brilhantes na escola, sem conflitos e diligentes. Quero dizer que todos nós vamos incorporando uma interpretação sobre nossas atitudes ou ações concretas, que podem estar bem afastadas da realidade emocional. No caso desse exemplo, a consciência não reconhece nada relativo ao desamparo nem às necessidades de uma criança. Só “sistematiza” que éramos bons e mamãe tinha muitos problemas.

É uma interpretação do que acontecia, mas não reflete toda a verdade. Em princípio, vamos continuar pensando, sentindo e interpretando a vida de um ponto de vista emprestado – habitualmente o ponto de vista de um adulto importantíssimo. Na maioria dos casos nos referimos à mamãe. Então continuaremos alinhando nossas ideias e nossos preconceitos em relação direta com o ponto de vista de nossa mãe. “Desse” discurso dependerá se vamos nos considerar bons ou muito ruins, se acreditamos que somos generosos, inteligentes ou bobos, se somos astutos, fracos ou preguiçosos. É importante notar que essas “definições” são semelhantes ao que disseram papai ou mamãe durante nossa infância, especialmente em relação a “como nos lembramos de nós mesmos”. A consciência só recorda o que é nomeado. Isso significa que, se nos acontece algo que ninguém nomeia, não recordaremos. Por exemplo, podemos ter padecido de abusos sexuais em nossa infância. Obviamente ninguém disse nada, em princípio porque todos os adultos que havia ao redor olhavam para o outro lado. Ninguém nunca disse: “Estão abusando de você e isso é um horror”. Ao contrário, o que se disse é: “Mamãe tem muitos problemas e não se deve fazer nada para preocupá-la ainda mais”. Ou então: “Isso é um segredo, você tem sorte porque te amo, você é a criança mais doce do universo e por isso foi escolhida”. Portanto, até mesmo se nos aconteceu algo bem concreto, doloroso, sofrido, triste ou ofensivo, a consciência não lembrará. Porque não houve palavras. Então tampouco houve uma “organização” do pensamento. Não foi possível “acomodá-lo” em nenhuma estante mental nem emocional. Aconteceu algo conosco, mas é como se nunca tivesse acontecido. Podemos ter sensações enevoadas ou confusas, mas não lembranças concretas. Então crescemos e como ninguém nomeou “isso”, e nós mesmos sendo crianças também não saberíamos “com que palavras explicar”, “isso” deixou de existir. Pode parecer inverossímil… mas é comum e frequente. Podemos ter vivido algo e não lembrar. E, ao contrário, podemos não ter vivido algo e, no entanto, se foi nomeado por alguém importante durante nossa infância, lembrar disso como se fosse uma verdade inquestionável.

Por Magda Lizbir Gomes

Terapeuta Holística

Fonte: Laura Gutman – A Biografia Humana