O luto coletivo de uma ilha

 O luto coletivo de uma ilha

Na última sexta-feira, 24 de junho, acordamos com uma notícia um tanto quanto incômoda e, para milhares de pessoas, angustiante. Por meio de um referendo, uma consulta pública à população, descobrimos que o Reino Unido (UK) – mais especificamente, a Inglaterra e o País de Gales – não mais gostaria de continuar fazendo parte da União Europeia (UE). O dia foi definitivamente marcado pela tristeza após a confirmação final: os “out” venceram 51,9% a 48,1% os “in”. Este resultado também nos revela uma grande divisão no país.

Num encontro de psicólogos brasileiros em Londres no domingo um colega disse que a sensação ao se andar pelas ruas da cidade era de que “alguém havia morrido”. De fato, uma parte da população está vivenciando um processo de luto. O luto é um processo que se inicia após o rompimento de um vínculo e estende-se até o período de sua elaboração – quando o indivíduo enlutado volta-se novamente, ao mundo externo. O luto é um processo essencial para que nós possamos nos reconstruir, nos reorganizar, diante do rompimento de um vínculo. É um desafio emocional, psíquico e cognitivo com o qual todos nós temos que lidar.  Estamos vivenciando um sentimento coletivo de perda. Não apenas os 48,1% dos britânicos que votaram para que ficássemos na UE, mas também milhares de outros imigrantes que não tiveram direito de voto de acordo com a legislação britânica estão de luto. Um vínculo sócio-político-econômico entre o Reino Unido e a Europa foi rompido e uma série de perdas em decorrência desse rompimento se sucederá, afetando o mundo como um todo.

Um aspecto importante relacionado com o luto coletivo é a perda efetiva do mundo que conhecemos, o nosso mundo presumido, que inclui tudo o que sabemos ou pensamos saber. Inclui a compreensão do passado, as expectativas do futuro, planos e preconceitos. Qualquer um desses aspectos terá impreterivelmente que mudar quando ocorrer uma mudança no cotidiano coletivo.

Prof. Colin Parkes, um renomado psiquiatra inglês e uma autoridade na área do luto, diz que quando seu “mundo presumido” é severamente abalado, o enlutado precisará reelaborar suas crenças e verdades para que ele possa reaprender a viver, refazendo suas expectativas e propósitos. O nosso mundo presumido foi severamente abalado pois pensávamos que o Reino Unido jamais sairia da UE. O Reino Unido que conhecíamos não existe mais.

Assim sendo, atender pessoas em processo de luto coletivo requer a clareza de identificar em que aspectos o mundo presumido mudou, com o que a pessoa pode contar para efetivar essa mudança e construir para si um novo significado.

De acordo com a Profa. Maria Helena Franco, a maior autoridade de luto no Brasil, outro aspecto importante é o do papel da mídia na intensificação desse luto. A intensidade do luto coletivo vai depender do quanto o indivíduo se sentia vinculado com o que se perdeu. É também um momento de reviver as próprias perdas pessoais. Afinal, quando imigramos para outro país vivenciamos uma série de perdas.

Estamos vivenciando a fase do choque/negação, pois ainda nos é muito difícil crer que esta ilha disse não ao anseio de implantação de um mundo mais unido e humanitário. Infelizmente, muitos eleitores que votaram pela saída o fizeram por intolerância ao diferente a ele – o imigrante.

Segundo o Migration Observatory, cerca de 3 milhões de cidadãos europeus vivem atualmente em UK, principalmente da Polônia (850 mil), República da Irlanda (330 mil) e diversos países do antigo bloco soviético. Há 350 mil brasileiros residindo em UK, sendo que a maior concentração está na cidade de Londres (300 mil).Em 2015, um número estimado de 330.000 pessoas imigrou para o Reino Unido, sendo que apenas metade vindas da União Europeia. Índia e Paquis-tão são os principais países de fora da UE que imigram para o Reino Unido.

O receio de que a atitude dos britânicos pudesse impulsionar movimentos nacionalistas por todo o país, com discurso antiimigração, está se concretizando. Londres, conhecida pela diversidade étnica e cultural, e cujo prefeito, Sadiq Khan, é um muçulmano de origem paquistanesa já noticiou alguns casos de xenofobia. Num processo de luto coletivo, somos autorizados a expressar nosso próprio luto. É neste contexto que eu, como imigrante no Reino Unido, estou avaliando as minhas próprias perdas, principalmente no que tange à minha visão de um país multicultural e tolerante. Parafraseando Fernando Pessoa, para mim a vida só vale a pena quando a alma é livre de preconceitos e quando temos a capacidade de compreender que a beleza humana está em sermos diferentes. É na aceitação da diferença que eu valido quem eu sou e a forma como eu me expresso no mundo.

Ao que nos parece, o resultado desse referendo marca o fim de um ciclo. Não sabemos quais serão as reais consequências desse rompimento. O que sabemos é que elas terão efeitos profundos na forma como iremos elaborar este luto.


Por: Nazaré Jacobucci
Psicóloga Especialista em Luto. Member of British Psychological Society
nanajacobucci@gmail.com